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2009: ZERO AO CUBO

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terça-feira, 30 de abril de 2019

Teoria da Guerrilha Artística – Décio Pignatari

[Teoria da Guerrilha Artística (1967) é um texto de Décio Pignatari,  presente em seu livro Contracomunicação publicado em 1971 – transcrição feita por metaesquina em abril de 2019]

Quando o guerrilheiro Oswald de Andrade – guerrilheiro da idade industrial – faz um discurso sobre a política cafeeira, pinta um quadro assinado Bostoff, faz "pesquisa alta" em antiliteratura e liga a Paulo Mendes de Almeida, para que este lhe "resuma Proust" ao telefone, pois precisa preparar com urgência uma tese universitária, está procedendo como um homem dos novos tempos, antropófago retribalizado devorando a divisão do trabalho e a especialização.

A aceleração do processo de informação e comunicação vai arrebentando os sistemas lineares e instaurando sistemas de informação instantânea, que tendem à implosão e à expansão (Marshall Mcluhan).

Nos processos lineares, os nexos de causa e efeito são vinculados à lógica aristotélica verbal. Já nos processos constelacionais ou abertos – onde o que importa são as propriedades de totalidade, como diz Wolfgang Wieser – "uma causa e um efeito podem, para quem olhasse a totalidade do universo, ser tomados um pelo outro, como que trocando seus papéis" (Valéry, sobre Eureka, de Edgar Poe). Pecado maior que os literatos atribuíam a Oswald: era um homem que "não lia". Ainda bem! Lema de Paul Valéry para uma biblioteca: "Plus élire que lire".

Nada mais parecido com uma constelação do que a guerrilha, que exige, por sua dinâmica, uma estrutura aberta de informação plena, onde tudo parece reger-se por coordenação (a própria consciência totalizante em ação) e nada por subordinação. Em relação à guerra clássica, linear, a guerrilha é uma estrutura móvel operando dentro de uma estrutura rígida, hierarquizada. Nas guerrilhas, a guerra se inventa a cada passo e a cada combate num total descaso pelas categorias e valores estratégicos e táticos já estabelecidos. Sua força reside na simultaneidade das ações: Abrem-se e fecham-se frontes de uma hora para outra. É a informação (surpresa) contra a redundância (expectativa). Nas guerrilhas, a estrutura parece confundir-se com os próprios eventos que propicia – e a estratégia com a tática. É uma estrutura que se rege pelo sincronismo. É uma colagem simultaneísta miniaturizada de todas as batalhas de uma grande guerra. Nas guerrilhas, as tropas, se de tropas pode falar, não tomam posição para o combate; elas estão sempre em posição, onde quer que estejam. E faíscam nas surpresas dos ataques simultâneos, num cálculo de probabilidades permanente que eluda a expectativa do inimigo. Estruturalmente, a guerrilha já é projeto e prospecto, já é design que tem por desígnio uma nova sociedade.

Haroldo de Campos, no Congresso do Pen, em New York (1966): "Acabou-se o tempo dos literatos!"

Augusto de Campos lembrando o lema valéryano para o "Esboço de uma serpente": "Je mords ce que je puis".

E o poeta Pedro Bertolino, lá de Florianópolis, citando Heidegger de permeio: "A vanguarda artística só se impõe e só pode ser concebida como antiarte, isto é, como investigação que origina para si a base em que se baseia, constituindo a sua própria negação e, portanto, superando-se indefinidamente para ser sempre presente."

Os nossos filósofos, psicólogos e sociólogos ainda não têm formação matemática e científica, e sim "humanística". No entanto, já nos bancos universitários, aprendem a adotar uma postura "científica". Fingem, por exemplo, menosprezar a literatura – mas são literatos. E há uma palavra que para eles é a mais científica de todas: humildade. É preciso ter humildade: é preciso primeiro dominar todos os sistemas filosóficos, psicológicos e sociológicos, para só então começar a filosofar, a psicologizar e a sociologizar. Em consequência, vivem a tomar notas, aguardando o grande momento. Mas eis que de repente lhes surge pela frente um pensador europeu da nova geração – Foucault, por exemplo – que lhes fala com o maior desembaraço de Mallarmé, Joyce, a lei dos quanta e a "Teoria da Informação". Não sabendo como lhe fazer as perguntas vivas do debate, só lhes resta tomar notas. Humildemente. Em nosso sistema universitário, tudo conduz ao ensino morto e nada à criação. Por exemplo, a Teoria da Informação e da Comunicação – que foi introduzida como disciplina no ensino brasileiro pela Escola Superior de Desenho Industrial, da Guanabara, em 1964, e para a qual preparei o primeiro programa, hoje já vai correndo o risco, em outras faculdades, de se transformar num incrível compósito de psicologismos, relações públicas e métodos audiovisuais, entregue que está aos azares da ignorância, da burocratização e da política tacanha da carreira e do carreirismo universitários.

Nada mais parecido com a guerrilha do que o processo da vanguarda artística consciente de si mesma. Na guerrilha, tudo é vanguarda e todos os guerrilheiros são vanguardeiros. E cada mosquito. E cada árvore. E cada gesto. Só a guerrilha é de fato total (excluindo-se a atômica...). Constelação da liberdade sempre se formando.

Já repararam como as toupeiras lineares do sistema concedem em dar importância teórica à poesia concreta, para logo em seguida reclamar de sua falta de "resultados"? Oportunismo do sistema em busca de equilíbrio: como milhafres no restolho ou albatrozes na esteira alimentar de um barco, acreditam um dia suprir a "lacuna", realizando as "obras" que os poetas concretos teriam deixado de realizar! Incapazes de perceber estruturas, não percebem que a "obra" da poesia concreta é tudo" confunde-se com os seus percursos, com os seus roteiros, com o seu processo de constelação móvel.

A visão de estruturas conduz à antiarte e à vida; a visão de eventos (obras) conduz à arte e ao distanciamento da vida.

Vanguarda já não pode ser considerada como vanguarda de um sistema preexistente, de que ela seria ponta-de-lança ou cabeça-de-ponte. Ao contrário, hoje ela se volta contra o sistema: – é antiartística. Vale dizer, configura-se como metavanguarda na medida em que toma consciência de si mesma como processo experimental. Metavanguarda não é senão outro nome para vanguarda permanente. Tenha-se uma visão sincrônica do processo. Mallarmé ainda é vanguarda, pois não se manifestou apenas como evento, mas deflagrou um processo no campo literário e artístico. E este processo ainda está longe de se esgotar, pois a sua taxa de informação ainda é alta em relação à redundância do sistema existente. A quantidade de ismos gerou uma nova qualidade, que continuamos a chamar de vanguarda, mas que é algo novo, pois se trata da vanguarda como sistema, que assim recupera, para a arte, séculos de atraso em relação à ciência, que sempre teve a experimentação como processo inerente à sua própria estrutura e desenvolvimento.

ARTE – Comunicação de controle analógico.

Num sistema, convém distinguir entre estrutura e eventos propiciados por essa mesma estrutura – o que corresponde à distinção que se possa fazer entre estratégia e tática. A informação está do lado da estrutura, a redundância do lado do evento. É por isso que o establishment absorve mais facilmente eventos do que estruturas. A difusão de estruturas é sempre mais difícil, dada a sua taxa máxima de informação. Vai sem dizer que, em geral, a sua absorção ameaça de destruição a estrutura absorvente.

Já na década de 40, creio, Oswald de Andrade desejou lançar no Rio de Janeiro um novo projeto ou movimento artístico, que se denominaria algo assim como "Projeto Zumbi", pelo qual propunha uma espécie de frente ampla dos artistas modernos, no sentido de organizarem uma resistência sistemática – até o último homem – a todas as tentativas de institucionalização (absorção) da arte moderna. Segundo me informou Pompeu de Souza, que ficou encarregado da redação final do Manifesto Zumbi (não sabemos se foi sequer publicado) e que serviu de mediador nas tratativas, a frente ampla não pôde ser formada porque os intelectuais solicitados a julgaram uma manobra de Oswald para se reaproximar e fazer as pazes com Mário de Andrade (já bem composto com o sistema, diga-se de passagem). De outra parte, sabe-se que Murilo Mendes respondeu a "Zumbi" com uma blague: "Seria mais revolucionário fundar novamente a Academia Brasileira de Letras". No entanto, a proposta de Oswald era historicamente correta e trazia no seu bojo a possibilidade de uma verdadeira "revolução cultural", destinada a impedir a sedimentação e a diluição das conquistas de 22 e a desentorpecer os seus membros. O "Projeto Zumbi" se insere no processo geral da vanguarda, deflagrado no século passado sob a pressão da revolução industrial, processo esse que vem estabelecendo um desenvolvimento marginal da arte em relação ao sistema artístico estabelecido e em oposição a ele. Sua estrutura dinâmica só é significante dentro de uma visada sincrônica e não diacrônica, ou seja, simultânea e não cronológica. Mas. por ora, se alguém conta ninguém canta esse Zumbi. Cantarão, porém: A massa ainda comerá do biscoito fino que fabrico (O. Andrade). A sua peça O Rei da Vela será montada por José Celso Corrêa, em agosto próximo [1967], para espanto e escarmento de todos os lineares teatrais.

A vulnerabilidade do sistema se acentua sob o impacto dos novos media (veículos ou meios de comunicação). Veja-se como crítica de cinema é mais aberta do que a teatral, como se envolve mais na análise da linguagem (estrutura) e menos na língua (eventos). A televisão avança sobre o cinema: recursos corriqueiros da televisão seriam considerados de extrema vanguarda no cinema: pense-se, por exemplo, na riqueza e na eficácia de um simples comercial de apenas trinta segundos! Na televisão a compressão da informação vai de par com a quantidade e multiplicidade de eventos que, por isso mesmo, deixam à mostra a sua estrutura. Mosaico de informações.

O controvertido e fascinante livro de Marshall Mcluhan, Understanding media (Compreendendo os Veículos) se apóia numa das idéias básicas da cibernética (Wiener): a organização é a mensagem. Bem misturadas com algumas ideias antecipadoras de Nietzsche (sem esquecer o afilhado Spengler): "Nada existe fora do todo" – "Geralmente se considera a consciência como conjunto sensorial e como instância superior; no entanto, ela é somente um meio de comunicação que se desenvolveu nas relações, em consideração aos interesses de relação."

A vanguarda nega o preexistente para criar uma nova totalidade. É vanguarda do pensamento bruto gerador de novos conceitos (A. Moles) e não das milícias do conhecimento já codificado. Os conhecimentos já codificados nutrem o impulso por meio da information retrieval e a recuperação da informação depende dos dados armazenados, da escolha que deles se faz, e, principalmente, dos projetos ou critérios de operação. Estes dois últimos aspectos envolvem atos decisórios, que são atos criativos, hoje sistematicamente estudados pela Heurística, ou Teoria da Decisão e da Descoberta. A ampliação do repertório, pois, não depende apenas do número de dados armazenados, mas da capacidade de decisão e invenção sobre a sua seleção e operação. Ou seja, da sua capacidade de linguagem.

Era de ver, mais do que a revolta, a surpresa de Edoardo Bizzarri, ante o absenteísmo da crítica e do público em relação ao espetáculo que montou, há poucas semanas, em São Paulo, sobre o Teatro Sintético Futurista. Tentou tirar-lhe a contundência, talvez, apresentando-o como "documentário ilustrado" e fiando-se no coxim amortecedor de meio século de decalagem. O adido cultural italiano desejava que a crítica de teatro se manifestasse sobre seu espetáculo, ainda que o futurismo servisse de mero pretexto. Talvez tenha aprendido que a vanguarda, como processo, não se presta a pretextos, visto como o metateatro futurista, pela extrema compressão, provoca a mutação de quantidade em qualidade, acabando com o teatro, tal como é comumente entendido. Ora, os críticos teatrais somente o são na medida em que deixem claro aos seus leitores que já sabem o que seja teatro, reservando-se como principal função o julgamento da qualidade do espetáculo e a distribuição de méritos e deméritos. No momento em que deles se exige uma tomada de posição reflexiva fundamental, que os engaja no próprio processo de teatro, obrigando-os à indagação "que é teatro?", é óbvio que, não sendo tatus, se mancam e se mandam, sob os mais variados pretextos. O professor Bizzarri teve de aprender, às suas custas, que linguagem é praxis, como diz o velho Sartre e que, em arte como alhures, a revolução de estruturas marginaliza…

Não as coisas, mas as relação entre as coisas. Não os eventos, mas a estrutura.

Contrariamente aos que julgam estar aderindo ao óbvio ululante, a figura, na arte ocidental, não é "conteúdo", mas sistema linear de estruturar a mensagem. À divisão clássica do corpo humano – cabeça, tronco e membros – corresponde a tripartição do discurso: sujeito, predicado e complementos. Por isso, não é mera coincidência que a aparição de estruturas simultâneas na arte moderna (cubismo, por exemplo) tenha implicado a destruição da figura, como destruiu o verso e a melodia: o que se destruiu foi a lógica discursiva e todo o seu embasamento verbal. A colagem não é senão cubismo ready-made levado à faixa da simultaneidade semântica: é uma arte cubista eventual. Entramos na era da desverbalização que, tanto para Oswald de Andrade como para Marshall McLuhan, é a era da retribalização do homem (sistemas lineares separam, sistemas mosaicos ou simultâneos agrupam).

Comunicar é codificar a realidade.

Assim como só se deseja e se defende o que se conhece e não se luta pelo que não se conhece – afirmação que implica o reconhecimento da enorme força do significado da redundância em qualquer sistema e, daí, da dificuldade de introdução do signo novo – assim também toda arte, inclusive a participante, que rejeite a revolução de estruturas é, por definição, reacionária. Dizem Marx, Lênin & Wiener: só a estrutura é informação. Não compreender a função da tecnologia – e linguagem também é tecnologia – na revolução das estruturas é o mesmo que considerar o surgimento de Marx durante a revolução industrial como uma aparição surrealista. Ainda bem que alguns dos nossos políticos e ideólogos de esquerda, um pouco mais perspicazes, já começam a considerar o Brasil como "universo industrial".

O problema comum da comunicação artística: – Gostou do filme? – Não. – Por quê? – Não entendi nada.

O gostar como função do significado (reconhecimento), o significado como função do repertório (conhecimento).

O equívoco de Glauber Rocha, em Terra em Transe, reside no fato de que não soube criar o hibridismo entre dois veículos. Enquanto a imagem se estrutura pelo simultaneísmo (liquidação de princípio-meio-fim), a "poesia" se organiza pelo linearismo. A figura do poeta serve de "fio condutor", para conferir "significado" à mensagem. Exemplo mais do que evidente de que o código verbal (verbalismo) lógico-discursivo ainda comanda aquilo que se costuma chamar de "o mundo dos significados", funcionando como verdadeira ideologia. Observe-se que a poesia, no filme, é poesia escrita e não lida ou oral.

Glauber deveria ter exercido sua criação na VOZ, numa poesia puramente oral, simultaneizando-a (veículo "frio" que é, a voz convida à participação "quente" – no sentido de temperatura informacional), por meio de superposições e distorções, como Dib Lufti fez com as faces, para obter efeitos operísticos de grotesco empolado. Quanto à poesia, ela se vincula a uma certa lírica vigente há uns cinco lustros, de que o próprio título do filme é exemplo.

As mentalidades lineares buscam "resultados" onde eles não podem ser encontrados, pois a estrutura simultânea deslocou suas coordenadas. Procuram tipos quando deveriam buscar protótipos. Seurat revolucionou o impressionismo (pintava de noite – suprema heresia!), morreu jovem e deixou um número diminuto de "obras", a maior parte das quais em "esboço" – mas volta e meia encontramos "resultados" de Seurat nas fotos em cores das revistas de grande tiragem. O Lance de Dados, de Mallarmé, tem apenas 19 páginas, mas equivale à Divina Comédia. Quantas obras deixou Mondrian? Alguns de seus "resultados" são encontrados na rua, nos corpos das mulheres, sob forma de vestidos. Webern destruiu a melodia, à la Mallarmé, e deixou apenas 32 obras de curta duração – mas está na raiz de toda música de vanguarda. Superando o tipo (obra em desenvolvimento linear), esses artistas prenunciam o advento do protótipo do desenho industrial. Esta foi também a preocupação de Klee: passar do tipo ao protótipo (obra cuja estrutura prevê sua própria reprodução). Nem é outra a preocupação dos artistas mais avançådos de nosso tempo.

O poeta é um designer da linguagem – não um artesão. Cria protótipos de linguagem. Não tipos.

Os Beatles indo do evento (consumo) à estrutura (produção): Paul McCarthney interessando-se pela música eletrônica de Stockhausen!

O jovem arquiteto, aluno do curso de pós graduação, estranhou que eu defendesse ao mesmo tempo uma arte de produção e uma arte de consumo. Respondi que, em cultura, a guerra clássica uniformizada e de desenvolvimento linear, não é praticável pelas forças radicais minoritárias. Ataca-se onde se deve e pode (desde que se tenha um projeto aberto, que permita ações simultâneas).

Só a estrutura nova é significado novo. E ação nova.

Estrutura: malha de relações entre elementos ou entre processos elementares. "Sem comunicação, não há ordem – sem ordem, não há totalidade" (W. Wieser). Informação: medida de ordem de um sistema. Ordem: diferenciação de formas e funções. Caos: desdiferenciação de formas e funções (tendência entrópica e redundante). Entropia: medida de desordem de um sistema.

Esta teoria (se for uma) é tanto minha quanto de Augusto de Campos. Que, no entanto, pode não subscrever, necessariamente, tudo o que aqui vai – funcionando eu, assim, como um escriba a todo risco e escrevendo com muitas penas ao mesmo tempo.

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